Nutricionista acredita que é possível conciliar tradição, prazer e saúde na alimentação

Em agosto, terá início o curso Interdisciplinaridade, alimentação e nutrição(Interanutri) – modalidade nutricionista, que será coordenado por Maria Cristina Faber Boog, graduada em Nutrição, com mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e docente aposentada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Maria Cristina, que é pesquisadora do  Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp, esteve no 5º Seminário de Articuladores Locais da Rede Sans e, na oportunidade, concedeu entrevista ao Informativo Rede Sans na qual aborda os avanços e perspectivas em segurança alimentar e nutricional, além de enfocar aspectos culturais presentes na relação homem-alimento.  
Inicialmente, gostaria que comentasse sobre o atual estágio da segurança alimentar e nutricional no Brasil?
Nós ainda estamos construindo, isso é ainda um processo inicial, nós estamos descobrindo como fazer isso em várias frentes porque tem a frente da agricultura, a frente da saúde, da comunicação social, da questão da propaganda que é muito polêmica, da alimentação em vários segmentos, a alimentação dos idosos, das crianças, a questão das doenças crônico-degenerativas. Então, nós temos muitas vertentes na construção da segurança alimentar e nutricional e estamos ainda iniciando.  
Que avanços já houve e quais são as perspectivas a curto prazo?
Nós temos avanços que não vêm de hoje. É importante a gente lembrar ainda das décadas de 80 e 90 que houve a redução dos níveis de desnutrição. Isso foi um ganho muito grande. Porque quando a gente pensa em segurança alimentar, da eliminação da desnutrição, redução dos níveis de desnutrição, isso não vem só da comida. Então, nas décadas de 80 e 90 a gente teve uma redução das doenças infecciosas, nós tivemos o aumento do poder aquisitivo decorrente da redução de preços. Um exemplo que eu gosto de citar é: quando eu era criança, frango era comida de domingo. A gente comia frango no domingo. Depois houve uma redução do preço, um aumento da produção e o frango entrou e hoje o consumo pode ser diário. Ele é mais barato do que a carne vermelha. Então, a redução da desnutrição, ela veio também com o aumento do abastecimento de água, com a redução das doenças infecciosas. Só de colocar água em uma comunidade você reduz a desnutrição porque diminui as doenças e as doenças desnutrem. Hoje nós estamos com um outro problema que é o consumo excessivo, o sobrepeso e a obesidade. Realmente nós temos um grande caminho a percorrer porque  houve uma redução importante dos níveis de desnutrição, mas nós temos agora essa transição nutricional, nós temos um aumento do sobrepeso e da obesidade e, consequentemente, das doenças decorrentes do sobrepeso e da obesidade: diabetes, hipertensão. Então, a prevalência dessas doenças ainda está em crescimento. Nós ainda não conseguimos controlar isso.

A senhora desenvolveu várias pesquisas relacionadas à alimentação entre estudantes. Quais foram os principais resultados que obteve?
Eu trabalhei bastante com alimentação de estudante, aliás de duas maneiras, porque quando eu ainda estava na Unicamp, eu atendia no centro de saúde da comunidade da Unicamp e ali eu era procurada por estudantes pra aconselhamento dietético e aí foi que eu comecei a perceber que precisava-se estudar a alimentação dos estudantes, precisava-se conhecer mais. Porque o jovem sai de casa e bom “agora eu estou livre”, agora não precisa mais seguir as regras”. Então, o primeiro ano de faculdade é muita festa e uma alimentação assim que foge daquela alimentação que é a da casa dos pais que geralmente é o arroz, o feijão, a carne, a verdura. A universidade, quando ela tem um bom serviço do bandejão, pelo menos uma refeição é garantida. Embora se faça muitas piadas de bandejão, mas é uma refeição minimamente equilibrada, é uma refeição completa. Há moradias estudantis em que praticamente não há relações entre os estudantes, é  tudo muito individual. Então, se você vai a uma moradia dessa, uma república, você abre a geladeira, você vai encontrar cinco pães de forma, cinco potes de margarina, cinco potes de requeijão e por aí vai. Cada um tem o seu. Há moradias em que tudo é compartilhado. Então, quando chega à noite, por exemplo, quando eles voltam da faculdade, eles vão fazer a sua refeição. Um faz o arroz, um faz o feijão, outro faz a carne, outro faz a verdura, outro faz o suco. E eles conseguem ter uma boa refeição, completa, compartilhada. Então, quem cozinha junto, quem se dispõe a cozinhar, tem uma alimentação muito melhor do que aquele que fica nos pacotinhos, nos instantâneos, nos sanduíches, apesar de que o sanduíche pode ser uma refeição boa, depende de como você acompanha esse sanduíche. Quando depende só da gente, a gente, às vezes, descuida, e alimentação é mesmo um hábito social, é para ser compartilhada. Então, quando a refeição é compartilhada, ela é melhor. O que  eu conclui é que quem come junto, come melhor.

Outro aspecto que a senhora trabalhou foi a relação homem-alimento. Também gostaria que falasse sobre esse assunto.

Maria Cristina destaca a participação de profissionais de diversas
áreas na construção da segurança alimentar e nutricional 
A gente pode estudar de vários ângulos também. Tem a questão cultural, mas sempre lembrando a cultura é transmitida primeiro pela família, pela sociedade, então aquilo que o alimento significa pra nós é porque houve um investimento de alguém: primeiro os pais, depois os professores e a sociedade em geral e os meios de comunicação. A relação que a gente tem com o alimento é a relação que a nossa família nos ensinou a ter, aquilo que era valorizado na nossa família. Sempre a alimentação da nossa família a gente acha que é muito boa. É muito difícil alguém criticar a alimentação que a mãe ofereceu. Algumas práticas alimentares que não são boas, elas não são necessariamente provenientes do fast food. Muitas são procedentes da nossa própria cultura, da nossa própria família e daí a dificuldade de mudar isso porque a gente tem que olhar criticamente pra isso. A gente é assim muito crítico com a alimentação dos outros e muito condescendente com a da gente mesmo. A gente tem muita resistência a enxergar  as práticas não saudáveis da nossa própria tradição, da nossa própria cultura. A gente fala: ah, o americano tem muito fast food, come muita gordura. Mas e as nossas práticas aqui? Aí a gente entra em conflito porque essas práticas nos aproximam como grupos, com a nossa identidade cultural, a nossa identidade está ligada a essas práticas alimentares. Então, a educação alimentar e nutricional não é uma tarefa fácil e nem banal porque por um lado a gente não pode afrontar essas questões que nos são caras, mas por outro nós não podemos ignorar e sermos assim tão permissivos em relação a esse crescente aumento do sobrepeso e da obesidade e das doenças. Em primeiro lugar pelo grande sofrimento que elas causam às pessoas. Em segundo lugar pelo custo delas para a saúde. Uma internação de alguém, de uma pessoa portadora de uma doença crônica, por exemplo, um infarto. Se a pessoa é portadora de uma doença crônica, já é mais complicado. Lógico, as doenças existem, elas fazem parte da vida, mas elas podem ser evitadas, muitas delas podem ser evitadas. Nós conhecemos como evitá-las, mas nós não podemos impor essas mudanças alimentares, elas têm que ser construídas, elas têm que passar por um resgate daquilo que é bom, principalmente focar naquilo que é bom, construir uma relação com o alimento. Essa relação homem-alimento tem que ser uma relação prazerosa. Não pode ser uma relação proibitiva. Tem um grande trabalho pela frente de promover, a partir das gerações novas, uma alimentação saudável, que não seja pra abolir tudo aquilo que seja prazeroso, mas que se possa construir um equilíbrio.
E como conseguir esse equilíbrio?

A gente não vai fazer isso do dia pra noite. Nós vamos mudar gradativamente. Nós vamos mudar a partir das crianças, mas nós temos que trabalhar com os adultos, nós temos que trabalhar com as pessoas portadoras de doenças crônicas, quer dizer, é um conjunto. Quando toda sociedade começa a olhar pra isso com um certo grau de interesse, então você começa a ouvir o que o nutricionista fala, o que a enfermeira fala e o professor da escola fala. Então, você vai juntando diferentes vozes em torno de uma proposta. Isso vai levar um tempo para se efetivar. Eu acredito sim que a gente pode, mas não é uma tarefa fácil, Não é só chegando assim: agora todo mundo vai ter uma alimentação saudável, ninguém mais vai tomar refrigerante, comer doce. A gente vai continuar comendo doce, só que de uma maneira diferente do que se comia. Há uma forma de a gente compatibilizar tradição, prazer e saúde também. Isso é uma arte.

Qual outro aspecto considera importante em relação à segurança alimentar e nutricional?  

Eu acho muito interessante hoje que a gente vê profissionais de diferentes áreas conversando sobre isso. Isso é muito novo porque até a pouco tempo a questão da alimentação saudável era apenas uma coisa do nutricionista como se ele tivesse que empunhar essa bandeira sozinho. Isso (alimentação) é uma questão social, assim como o meio ambiente. Nós temos que ter a participação de todas as pessoas e o caminho é por aí. Tudo é jogado sobre o professor, mas o professor ele não está lá, em princípio, para fazer educação alimentar. A função da escola é muito mais ampla. Ele tem todo um trabalho no qual vai ser inserida alguma questão, mas a gente não pode esperar que o professor foque toda a questão do trabalho dele sobre isso. Os serviços de saúde sim têm uma tarefa muito importante. Dentro da agronomia pensar como produzir alimentos de melhor qualidade, barateando e fazendo chegar ao consumidor de forma mais rápida com menos intermediários. Eu acho que todas as áreas de conhecimento têm algo a contribuir.