Brasileiros já gastam mais com transporte do que com alimentação

(Texto reproduzido do site: https://extra.globo.com/noticias/economia/brasileiros-ja-gastam-mais-com-transporte-do-que-com-alimentacao-23995535.html?fbclid=IwAR2Iyss5Fh91fpKtqOz69bV-GWTY5KtdI6tDwaKT3FKbJxgCuXnDDh9vmMc).

Os brasileiros passaram a gastar mais recursos com transporte do que com a alimentação. Segundo dados da Pesquisa de Orçamento Familiares (POF) de 2018, divulgada nesta sexta pelo IBGE, 14,6% de todos os gastos mensais das famílias brasileiras são com transporte coletivo, compra de combustíveis ou de veículo. Os gastos com alimentação correspondiam a 14,2% de toda a despesa. Esta é a primeira vez na série histórica da pesquisa, iniciada na década de 1970, que essa inversão ocorre.

Na pesquisa anterior, de 2009, a parcela do orçamento comprometida com as despesas de transporte era de 16% e com alimentação 16,1%. A inversão ocorrida nos últimos dez anos foi influenciada pelo aumento dos gastos das famílias ricas na compra de veículos novos ou gasolina e etanol, que ficaram mais caros.

Das despesas com transporte, 38% estavam relacionadas à aquisição de veículos. O gasto com gasolina também tem forte peso nas despesas. Representa 20% delas. O transporte urbano tem participação mais tímida, de 8,9%, em média.

“É a primeira vez que acontece isso na história das POF. Na alimentação você consegue fazer escolhas, a substituição de produtos é mais fácil. Transporte você tem que pegar de qualquer maneira.” explica André Macedo, gerente da POF do IBGE.

O peso dos gastos com transporte no orçamento varia entre as regiões. Segundo o IBGE, as maiores participações estão na região Centro-Oeste e Sul, ambas superiores ao registrado no Brasil. A menor participação ocorreu na região Nordeste.

A pesquisa mostra, no entanto, que há uma brutal desigualdade dos gastos com locomoção entre pessoas com diferentes rendimentos. Para as famílias mais ricas, com renda acima de 25 salários mínimos, as despesas com transporte (R$ 4.154,94) eram 30 vezes o valor do gasto pelos lares com rendimentos mais baixos (R$ 140,11).

Entre as famílias mais pobres, com renda de até dois salários mínimos, é possível perceber que os gastos com compra de veículos (24,4%) se equivalem aos gastos com transporte urbano (22,3%) e combustíveis (26,5%).

O peso da aquisição de um automotor e com abastecimento começam a aumentar à medida que a renda familiar aumenta. Entre os mais ricos, com renda familiar superior a R$ 23.850, 50,9% dos gastos com transporte são para compra de carros, por exemplo.

“Os brasileiros ainda têm um grande interesse em ter um carro. Não é um efeito as políticas de IPI reduzido (política vigente até 2014). As pessoas ainda querem ter carro.” avalia Fernando Gaiger, pesquisador do Ipea que estuda os resultado da POF.

Segundo Macedo, as despesas com transporte e alimentação possuem comportamento distinto. O peso dos gastos com locomoção é maior entre os mais ricos, diferentemente do comportamento das despesas com comida. Esta tem peso maior entre os mais pobres uma vez que, a medida que a renda aumenta, a despesa com alimentação não cresce na mesma proporção.

Para Carlos Augusto Monteiro, médico e professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, a inversão registrada pela POF pode ter desdobramento na qualidade da dieta da população brasileira. Segundo ele, com o peso maior de outros gastos como habitação e transporte, os brasileiros terão menos recursos para utilizar em produtos de boa qualidade nutricional.

“É muito difícil a pessoa diminuir o gasto com alimentação e manter a qualidade. Você tem uma margem de manobra menor. Os alimentos ultraprocessados, feitos com gordura de baixa qualidade, açúcar e sais, a indústria consegue vender barato com grandes volumes. Isso pode ajudar a piorar a alimentação dos brasileiros.” afirma.

A pesquisa revela, ainda, também que alimentação, habitação e transporte comprometeram, em conjunto, 72,2% dos gastos das famílias brasileiras em despesas de consumo. Isso corresponde a R$ 3.764,51 dos R$ 4.649,03 gastos mensalmente pelas famílias brasileiras, em média. O principal gasto segue sendo habitação, com 36,6% dessas despesas. Entre os mais pobres, corresponde a quase 40% do orçamento das famílias.

Famílias gastam 72% mais com saúde do que com educação

A Pesquisa de Orçamento Familiares (POF) do IBGE mostra também que as famílias gastam, na média, mais com saúde do que com educação. Mensalmente os brasileiros desembolsam R$ 302,06 com assistência médica, enquanto pagam R$ 175,60 com educação – uma diferença de 72%.

Segundo o IBGE, desde 2002, os gastos com assistência médica e remédios vêm ganhando protagonismo, aumentando seu peso no período (de 4,2% em 2003, para 6,5% em 2018). Nesse intervalo, os gastos com educação cresceram 0.6 pontos percentuais, de 4,1% para 4,7%. A mesma tendência é observada quando é analisadas as situações urbanas e rural.

O aumento do gasto com saúde foi influenciado, entre outros fatores, pelo crescimento das despesas com planos de saúde. Em 2009, última edição da pesquisa, correspondia a 23% de todos as despesas com assistência média. Em 2018 já representam mais da metade (55%).

No entanto, a depender da faixa de renda, o principal gasto com essa rubrica se altera. Nas famílias com renda até dois salários mínimos, o gasto com remédio corresponde a 72% de todo o gasto, diminuindo nas famílias mais ricas. Entre os com renda acima de 25 salários, equivale a 25% do gasto, enquanto o gasto com plano de saúde corresponde a 50%.

A pesquisa

A POF é o levantamento mais detalhado sobre os padrões de consumo dos brasileiros. Ela é realizada desde os anos 1970. Nesta edição, ela visitou quase 58 mil dos 70 milhões de lares brasileiros, em 1,9 mil cidades. A coleta de dados durou um ano. As famílias que participaram da pesquisa tiveram de preencher cadernetas e questionários com todos seus hábitos de consumo. Em média, elas eram compostas por três pessoas.

Baseado nessa pesquisa, o IBGE atualiza a cesta de itens que compõem o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que é a inflação oficial do país. O instituto deve divulgar nas próximas semanas uma nota detalhada de como os dados colhidos no ano passado influenciarão na composiçao desse indicador.

Com o levantamento, também será possível identificar quantas famílias brasileiras vivem em insegurança alimentar. Ou seja, têm acesso escasso a alimentos e podem estar em situação de fome.

Autores do texto: Daiane Costa e Pedro Capetti.