por Giovanna Soler Donofre
Ao perguntar para um grupo de pessoas o que é se alimentar de forma saudável, a maioria responderá algo parecido com “comer frutas, verduras e legumes”. De fato, o conceito de comida saudável não parece distante da maior parte dos indivíduos. Não é distante também do que traz o Guia Alimentar para a População Brasileira em sua publicação mais recente, de 2014, que divide os alimentos por grau de processamento e orienta o consumo alimentar a partir dessa organização.
Essa divisão trazida pelo Guia descreve os alimentos como in natura ou minimamente processados, processados e ultraprocessados, sendo que o consumo dessa última categoria não é encorajado, definido como um padrão a se evitar. E, para isso, as motivações são múltiplas: os ultraprocessados são ricos em calorias, gorduras produzidas artificialmente, sal, açúcar e aditivos alimentares. Além disso, por serem fabricados pela indústria, sua produção é nociva ao meio ambiente pois gera poluentes e muito lixo. Ainda, se a base da alimentação de uma família for a partir de comida processada, resta menos espaço nesse contexto para o consumo de comida natural e produzida de modo local pelo pequeno produtor, desfavorecendo a geração de renda para ele e aumentando o lucro da multimilionária indústria de alimentos. Dessa forma, reduzir o consumo de ultraprocessados é importante não somente para a saúde de modo individual, mas também para todo o sistema alimentar.
Contudo, apesar do conceito de comida saudável não parecer desconhecido para a população, o que acontece na prática é diferente. Segundo resultados da Pesquisa de Orçamento Familiar dos anos de 2017 e 2018, houve diminuição no percentual de energia a partir de alimentos in natura ou minimamente processados e crescimento no percentual relativo a alimentos processados e ultraprocessados, o que ainda cresce junto com a renda: quanto maior o poder aquisitivo da família, maior parece ser o gasto com os industrializados. E isso pode ser curioso pois, em linhas gerais, o raciocínio leva a crer que quanto maior a renda, maior o nível de escolaridade e conhecimento. Assim, o dilema do padrão alimentar do brasileiro aparenta estar mais relacionado ao “como” e “porque” se alimentar de forma mais nutritiva do que ao “o que” isso significa propriamente.
Pensar essas questões implica em ampliar o olhar, deixar de lado preconceitos, entender o ser humano como um ser biopsicossocial (influenciado, na sua existência, por esferas biológicas, psicológicas e sociais) e o comer como um ato que o acompanha desde o nascimento, e que é influenciado pelo meio social, pela cultura, pelo clima, pelo seus pares e por muitos outros fatores. Comer, desde o desenvolvimento da humanidade e das civilizações está relacionado a uma forma de status social, e podem ser exemplos o uso dos talheres, a organização da mesa e os alimentos que determinadas pessoas e grupos sociais podem ou não comer. E isso, por mais distante que pareça, extrapola para os dias atuais, o que a indústria não deixa passar. As camadas econômicas mais baixas precisam de alimentos que de fato “matem” a fome por menor preço e as classes mais altas buscam praticidade sem deixar de lado o dito “saudável”. Resultado: a empresa não vende só refrigerante de cola, ela vende felicidade com açúcar ou sem, a depender do que você desejar. Não vende só cereal matinal, ela vende o cereal fit que te deixa com o corpo da modelo da caixa. A indústria compreende e cria necessidades, num ciclo que se retroalimenta e está para muito além da escolha e da vontade individual.
Finalmente, o acesso à informação de qualidade é um privilégio. A partir do momento que se toma consciência disso, é preciso agir no sentido de compreender que o comer também pode ser um ato político. Mais do que nunca, incentivar a redução do consumo dos alimentos ultraprocessados é preciso. Valorizar o produtor e o comércio local, reduzir a compra de grandes marcas, diminuir a cadeia de suprimentos, desperdício e produzir menos lixo é ajudar na promoção de uma alimentação mais adequada e saudável que, como traz o Guia alimentar brasileiro “só é possível a partir de um sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável”.
Brasil. Guia alimentar para a população brasileira. In: Atenção Básica, editor. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
Brasil. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018. Análise de segurança alimentar no Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 2020.
Site Agência IBGE Notícias, link: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27298-pof-2017-2018-alimentos-frescos-e-preparacoes-culinarias-predominam-no-padrao-alimentar-nacional – acessado em 26/10/2020 às 14h.
SIMÕES, BS. Alimentos ultraprocessados: a classificação nova, descrição e associação com indicadores de posição socioeconômica no estudo longitudinal de saúde do adulto. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, p. 122. 2018.
BARCELLOS, Gustavo. O banquete de psiquê: Imaginação, cultura e psicologia da alimentação. 1ª edição. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 29 de agosto de 2017.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
Texto elaborado para a disciplina “Nutrição e Saúde Pública” – Programa de Pós-Graduação em Alimentos e Nutrição da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da UNESP.