O centenário da Reforma Universitária de Córdoba e a necessidade da universidade para além do capital na América Latina

Por Henrique Tahan Novaes – Presidente da ADUNESP  -SS. Marília

“Levantamo-nos contra a universidade, contra a igreja, contra a família, contra a propriedade e contra o Estado” (Deodoro Roca, Estudante de Córdoba).

Córdoba sempre foi considerada uma região isolada, “un claustro encerrado entre barrancas”, refúgio de espanhóis fugitivos. A universidade confessional de Córdoba nasceu em 1613! Ela foi estruturada sob o modelo de distribuição de poder da sociedade cordobesa, com peso muito forte da igreja (principalmente dos jesuítas) e dos setores sociais privilegiados, dando origem a uma hegemonia clerical-conservadora.

A universidade reproduzia a distribuição do poder real e simbólico das classes privilegiadas. Era uma universidade sem autonomia, com escassa consciência e práticas científicas, nenhuma abertura social e sem democracia política interna

Essa realidade começa a mudar com a expansão da ferrovia desde 1870, a modernização da província, a criação do Observatório Astronômico Nacional em 1871 e com a chegada de imigrantes italianos “liberais e garibaldianos”. Os trabalhadores de Córdoba fundaram associações de ajuda mútua, núcleos de livre pensamento, e renovaram a União Cívica Radical (UCR), criando uma ala de “radicalismo vermelho”.  Os imigrantes árabes fundaram a sociedade sírio-libanesa em 1907, e houve também a criação de associações de judeus. Einstein passou por lá em 1925.

Entre 1895 e 1918, triplicou a população, chegando a cerca de 150 mil habitantes e 2 mil estudantes. Foi nesse período que Córdoba presenciou o desenvolvimento do movimento operário, principalmente ligado ao setor ferroviário e de calçados.

O Movimento de Córdoba, que se iniciou em junho de 1918, foi a primeira confrontação entre uma sociedade que começava a experimentar mudanças na sua composição social e uma universidade enquistada em esquemas obsoletos.

No plano nacional, é preciso destacar o surgimento da Federação dos Estudantes da Universidade de Buenos Aires (Fuba) criada em 1908. A Federação Universitária Argentina (FUA) foi criada em 1918, poucos dias antes da eclosão da Reforma.

No final do século XX e início do XXI presenciamos inúmeras greves em Buenos Aires e nas cidades que se industrializavam, denotando a ascensão da classe trabalhadora. A classe média, principalmente dos filhos de imigrantes, reivindicava seus direitos ao Estado. Houve uma divisão dentro da elite, e o Radicalismo, no poder desde 1916, necessitava de uma universidade não jesuítica. Era preciso modernizar uma universidade retardatária em comparação com a Universidade de Buenos Aires, referência para os reformistas.

Os reformadores de 1918 foram influenciados por José Ingenieros, que “aproximou a luta universitária do socialismo”. Também foram influenciados por Alfredo Palácios, um pensador argentino que combinava socialismo evolucionista com positivismo. Além destes, evocavam o “grande Sarmiento”, “el poderoso pensador”.

A influência “externa” veio da Revolução Mexicana (1910), da “crise espiritual” do pós-guerra, da Revolução Russa (1917) e da necessidade de um destino comum para a América Latina (hispânica).

Alguns intelectuais acreditam que os reformistas foram influenciados por experiências tão díspares quanto disruptivas: o democratismo radicalizado, Francisco Pi y Margall, o sindicalismo revolucionário do francês Georg Sorel, de Proudhon e Lenin. Alfredo Palácios foi “decretado cidadão de Córdoba”.

Os reformistas evocavam os princípios da Revolução Francesa. A Revolução Russa foi interpretada como “uma revolução democrática levada às últimas consequências” pela Gaceta Universitaria. José Ingenieros, positivista e socialista, também influenciou o movimento de Córdoba. Cantar ‘A Internacional’ não era contraditório com cantar ‘A Marselhesa’.

Em 1919 e anos posteriores, com a radicalização do processo, sofreram a influência das lutas revolucionárias na Hungria, Alemanha e Itália, bem como de outros países europeus. Na Gaceta Universitaria, jornal que veiculava as principais ideias dos reformistas, diziam que era a “hora revolucionária”. Havia uma abertura ao movimento operário, ao feminismo, georgismo, marxismo e anarquismo, além da maçonaria.

“Esas academias fósiles no discuten nada; la unanimidad es regla casi invariable y la docilidad, el servilismo y la carencia de ideales su sello habitual, inconfundible (Gaceta Universitaria n. 1, mayo de 1918).

A síntese mais precisa das bandeiras de Córdoba pode ser vista na seguinte afirmação de Deodoro Roca, um dos principais intelectuais da Reforma, destaca no início deste breve artigo: “Levantamo-nos contra a universidade, contra a igreja, contra a família, contra a propriedade e contra o Estado” (Deodoro Roca, Estudante de Córdoba).

As principais bandeiras da reforma foram: a) o governo democrático e o pluralismo político; b) a gratuidade (só alcançada no governo de Perón, em 1947); c) a autonomia universitária; d) a liberdade de pensamento e de expressão, garantidas por cátedras paralelas e pelo ingresso por meio de concurso público e o acesso universal.

Foi no movimento da Reforma que surgiu o que José Carlos Mariátegui chamou de “nova geração latino-americana”. Foi lá que se consolidou o tema da autonomia universitária, a crítica à fábrica de diplomas colocada pelo líder Deodoro Roca, a proposta de estabelecimento de vínculos com os trabalhadores e o governo tripartite.

Outro ponto levantado por inúmeros reformistas é o enlace vital do “universitário com o político”, mais precisamente, com as questões políticas, para a criação de uma nova ordem social. Dizia Deodoro Roca que “o universitário puro é uma coisa monstruosa” porque exemplifica e reproduz o modelo de uma instituição educativa alheia aos problemas e debates sociais, com uma visão profissionalista carente de formação e visão universalista e humanista. O que hoje chamamos de “fábricas de diplomas”, “escolões de terceiro grau”, extremamente lucrativos e que mais parecem galpões que formam seres incompletos, totalmente alheios aos grandes problemas nacionais, era chamado por Roca como “fábrica de títulos”. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Para Julio Mella, um intelectual marxista cubano que foi assassinado aos 25 anos, a reforma teria de abarcar quatro núcleos: a) não ser uma fábrica de títulos; b) não ser uma escola de comércio “onde se vai buscar tão somente um meio de ganhar a vida”; c) influir de maneira direta na vida social; e d) socializar o conhecimento.

José Carlos Mariátegui observa que “o desenvolvimento incipiente e o mísero alcance da educação pública fechavam os graus superiores do ensino para as classes pobres”.

Isso pode ser visto, por exemplo, no caso da Universidade Central da Venezuela (UCV). Nas palavras de Azevedo:

“As aulas na UCV, pelo menos até a renovação empreendida por Simón Bolívar e José María Vargas a partir de 1826, eram ministradas em latim e a admissão dos estudantes obedecia a um procedimento que, atualmente, poderia ser classificado como racista. Para adentrar como aluno na universidade, o candidato deveria possuir a pele branca e apresentar um requerimento contendo um memorial (vista et moribus) detalhando sua vida e seus costumes”

No início, as principais bandeiras difundidas eram liberais, vertente que é associada pelos pesquisadores tanto com liberdade de ideias e de pensamento quanto com valores associados ao acesso da universidade pelas classes médias. Também leram a Revolução Russa como liberdade de cultos, matrimônio não obrigatório etc.

José Carlos Mariátegui destaca que o movimento reformista é demasiado heterogêneo. Liberais, positivistas, socialistas, anarquistas, anti-imperialistas de distintos matizes disputaram o caráter do movimento reformista. Porém, ele acredita que, com o contato com o proletariado, as ideias foram se tornando mais claras e adquiriram um contorno mais revolucionário, abandonando a postura inicial “romântica, geracional e messiânica”.

De acordo com Roberto Leher, a reforma propiciou reflexões penetrantes sobre a educação popular, o caráter da universidade, sobre problemas até então considerados incompatíveis com a educação superior, como a presença dos proletários nas instituições, o governo compartilhado e a autonomia da universidade, além das perspectivas latino-americana e anti-imperialista de transformação da sociedade.

Refletir sobre a Reforma Universitária de Córdoba e resgatar esse fio da meada certamente vai nos ajuda a pensar e lutar pela construção da universidade para além do capital na América Latina. Certamente nos ajuda a pensar em outras possibilidades de ensino, pesquisa e extensão no século XXI, tendo em vista a emancipação do sofrido povo latino americano. Viva o centenário da Reforma de Córdoba!